domingo, 29 de novembro de 2020

Dia 167 - Quadrado

Quadrado  é como está por esta altura o meu traseiro de tanta bicicleta e tanto sofá.

Quadrados e em bico é como estão os meus olhos de tanto filme e tanta leitura.

Quadrado é como se encontra o meu ventre neste momento após tanta panqueca e tanto chá. 

Quadrado mas quase vazio está o cesto onde guardo a lenha para a lareira.

Digam-me, quantos mais dias temos de nos esconder das bichezas, ein?


terça-feira, 24 de novembro de 2020

Dia 166 - Telecoiso

A pandemia é como uma série, quando achamos que já terminou, começa uma nova temporada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Dia 165 - o vento há - de virar

Aproveitando a dica do Doutor de que um copo de vinho não faz mal a ninguém e até ajuda a afastar o bicho pois este não gosta de álcool, Maria abre uma garrafa de tinto. Do bicho não sabe, mas todos os dias um pouco antes do jantar, retira a rolha, deixa-o respirar, verte um pouco num copo de pé alto, que o vinho quer-se bebido com elegância e saboreia. 
Mais do que o nectar de Baco, saboreia o momento que só peca por ser vivido a sós pois ninguém naquela casa o aprecia e o sorve como ela, olhos postos no infinito, pensamento bem longe, alma arredia e esvoaçante . 
Maria, cada vez mais, sente que este mundo não é o dela, no entanto, embrenha-se todos os dias nele. Esquece a noite e vive o dia, calmente e ao sabor do vento. O vento há - de virar. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Dia 164 - sim, eu sei

Esta aqui que vos escreve gosta de ver o lado poético das situações e descreve as suas corridas pelos parques da cidade, os patos tão lindos a recolherem-se para a noite e as janelas iluminadas com pessoas dentro e as sombras da neblina nas árvores e mimimi.
O que a desgraçada não vos descreveu ainda foi que por causa dos patos e do nevoeiro e da iluminação e da roupa molhada e dos tenis escorregadios da humidade, foi que traz as mãos todas escalabardadas da queda aparatosa na pista depois de tropecar numa pequena saliência que nem viu por estar com a cabeça a pensar em merdas. Sim, foi como se estivesse a deslizar numa onda em cima de uma prancha mas sem onda e sem prancha.
Aquilo é que foi deslizar no asfalto de mãos esticadas e joelhos e barriga e mamalhal. E a julgar pelas mãos, não sei como não fiquei com a roupa toda rasgada. 
Isto é uma cena do caraças, uma gaja tem a mania que é nova e além de se pôr a correr ainda quer melhorar tempos e ganhar às pitas que andam ali a treinar à volta do estádio e depois, o cérebro manda acelerar mas as pernas e os pés começam a arrastar-se. Claro que qualquer petite saliência no piso é a morte da artista.
E é isto malta e depois, como sou uma gaja cheia de manias e teimosa que nem uma mula, ontem fui correr de novo e quis correr mais e mais rapido e sem me esbardalhar. Nem que a vaca tussa caramba, se os joelhos não me atraiçoarem, um dia ainda  vou até a Capital e atravesso a Ponte 25 de Abril a correr. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Dia 163 - Circunscrita

Caída a noite na cidade, corro pelas ruas empedradas do parque em direção ao patos que dormem com o bico virado para trás e enfiado numa das asas. Não sei porque alguns dormem de pé e outros parecem ainda estacionados dentro de água. O nevoeiro cobre o céu e tudo à minha volta dando um ar fantasmagórico às árvores e uma luz estranha aos candeeiros que iluminam o meu caminho. Nem uma brisa sopra, tudo tão sereno e tranquilo parecendo eu pairar, suspensa no ar daquele momento. Acabei por desviar o meu trajeto para não perturbar a calmaria que me rodeava. Mais à frente vi um gato agachado atrás de um arbusto e ainda uma ratazana à beira do lago a beber água. Só eu estava ali, fora do contexto, respiração ofegante, roupa e cabelo molhados do nevoeiro, o som das minhas passadas a despertar os animais.

Continuei a correr pela pista, atravessei algumas ruas, várias passadeiras, três escolas já vazias em direção ao outro parque. Não o que fica mais distante de casa e onde todos caminham e correm, não. O outro, que também tem patos e pequenos pontos de luz que dão ao lago uma luz difusa e espelhada. Gosto de os verificar assim, já recatados e prontos para a noite, dá-me uma sensação de paz e de esperança para um novo dia.

Aprecio sobremaneira estas minhas corridas solitárias, em que supostamente saio para correr na caixa do nada mas em que o botão do meu cérebro teima em não desligar e vê e pensa e planeia e decide. E enquanto atravesso ruas e praças e parques e vejo janelas com pessoas dentro e carros, só penso que sou o Forrest Gump, a atravessar o mundo e corro e corro e corro... 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Dia 162 - aventuras na N2

Foi no sexto e ultimo dia da travessia da N2 que protagonizamos o pior e o melhor desta viagem de bicicleta.
Partimos de Ferreira do Alentejo, em pleno coração do mesmo e tinhamos os derradeiros 143 kms para fazer e terminar assim o nosso desafio. Toda a Serra do Caldeirão para atravessar, um calor abrasador, o rabo a pedir clemência e as pernas moídas, mas o objetivo estava prestes a ser superado, estava tudo bem. 
No trajeto haveriam apenas pequenas povoações de muitos em muitos kms para abastecer de agua e alimento, tinhamos portanto de chegar ao Ameixial à hora do almoço e rezar para que o único restaurante existente estivesse aberto. Estava. À pinha a bem dizer, mas lá descobrimos uma mesinha vazia ao fundo. Todos estavam a comer bacalhau com batatas, ovo e grão pelo que se nos arregalaram os olhos, era mesmo aquilo que nos apetecia. As duas senhoras muito idosas que geriam o estaminé, arrastavam-se à volta das mesas e muito tempo depois lá nos atenderam. Já não tinham bacalhau, apenas entrecosto. Oh desilusão, mas estando a próxima hipótese de satisfazer o estômago muitos kms à frente e a subir, sim senhora, dissemos nós, venha!
Bom, aquelas duas idóneas, bondosas e inocentes senhoras, despacharam finalmente o entrecosto rançoso com quase dois meses que tinham por ali a 3 ciclistas esfaimados, de alforges às costas e no seu sexto dia de pedalada.... Nós! Todas as pessoas que vieram a seguir a nós, degustavam deliciadas um belo de um bacalhau, só para nós não havia. Bom, o entrecosto era tão mau, que sei que comemos dois pausinhos de carne cada um, o suficiente apenas para termos energia até à próxima paragem. Pagamos e pedalamos dali para fora. Quando me lembro, ainda tenho vontade de vomitar. Uma velhacaria foi o que aquelas velhotas com cara de anjo nos fizerem. Que sejam felizes com isso, é o que lhes desejo. Enfim!
Uns kms de subida mais à frente paramos finalmente num café onde nos refastelamos na esplanada, ao fresco e de volta de umas sandochas.Mnhami que souberam a lagosta. Abastecemos de água fresca e arrancamos de novo. Uns 3 kms depois, estavam ainda uns trinta e tal graus de calor, continuando a subida do Caldeirão, cruzamo-nos com um carro a deitar fumo que nos pediu ajuda. Precisava de água! E assim despejamos todos os nossos bidões de água fresca acabada de comprar para os próximos kms, no radiador do carro do homem. Ele, tão agradecido, presenteou-nos com 2 latas de sumol, quentes, que era o que tinha consigo e que racionamos entre os 3 até S. Brás de Alportel onde bebemos uns 2 litros de agua cada um. Valeu por tanto mas tanto tudo isto e ainda nesse dia chegamos ao km 738 em Faro, nosso destino final e num estado puro de euforia, êxtase, alegria, felicidade e superação. 
A vida é mesmo assim.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Dia 161 - Histórias

Prendem-me as histórias contadas na primeira pessoa, plenas de palavras apressadas, descompassadas, por vezes pausadas, para respirar, suspirar ou tocar no peito. São histórias contadas com as mãos e com os olhos, com voz trémula ou um sorriso nos lábios, ou gargalhando até. Nem todas têm finais felizes ou são engraçadas, muitas são tão tristes e sofridas. Ainda assim, são estas as histórias que me fascinam por sabe-las saídas do coração. 
Serão também histórias as que se contam dos outros e às quais se acrescentam ou retiram pormenores que aos olhos de quem as conta não terão relevância suficiente ou desacreditam a sua própria visão sobre as ditas e por isso, detalhes que não valem a pena. Estórias, é como gosto de lhes chamar, não tendo a certeza do que será real ou ficção. E quantas tenho ouvido, mirabolantes, chocantes, cómicas ou ridículas. 
A vida neste momento parece uma estória. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Dia 160 - Resolvida mas pouco

 Na dúvida, recorri ao Dr. Google. 

Da pesquisa efetuada, o "ser bem resolvido" é aquele ou aquela que busca autoconhecimento, enfrenta as dificuldades com bom animo e disposição, não se abala diante de julgamentos alheios e segue dando de si o melhor. Assim sendo, sou até capaz de ser um exemplar e sei de muitos que o serão igualmente. Já a porca começa a torcer o rabo na conclusão que li depois, que diz haver aí umas 6 caraterísticas que marcam o resolvimento e a pessoa resolvida e que são gratidão, perdão, responsabilidade, positividade e altruísmo e também uma quantidade de auto-coisas como auto-perceção, auto-controlo, auto-motivação, empatia, práticas sociais,  etc, chavões com os quais não me dou assim tão bem.

E na duvida voltei a ficar.

E depois... depois de muito pesquisar, tornei-me ciente de que não sou com certeza uma dessas pessoas bem resolvidas, andando em constante guerra comigo e com os outros, numa luta inglória contra o que sou versus o que deveria ser. 

E com isto me vou. Vou ali resolver-me e já venho.