quarta-feira, 11 de março de 2015

Histórias III - Elisa

Ela própria uma boneca, de grandes e vivaços olhos escuros e umas bonitas tranças que a mãe lhe fazia escrupulosamente todas as manhãs, enfeitando-as com laços cor de rosa enquanto lhe ia dizendo que um dia, também ela, iria ser mãe e tinha de ter muito brio com a educação de seus filhos. "É tão linda a minha menina" dizia a mãe a toda a gente que se metia com ela quando a levava pela mão, com a sua boneca ao colo.
Elisa adorava bonecas e tal como via a mãe fazer ao irmão, despia, vestia e com todo o carinho deitava, levantava, dava papa e colo... Ela sempre brincava com as suas bonecas e se fingia de mãe, quando fosse grande, queria ser mãe.

Um dia já quase adulta, em que se divertia com as amigas enquanto faltavam a uma aula, conheceu um rapaz por quem se apaixonou perdidamente. Namoraram alguns meses, o tempo suficiente para acabarem a escola, arranjarem um emprego e logo casaram que até parecia que tinham pressa. E tinha. Elisa tinha pressa de realizar o seu maior sonho, o de ser mãe.

Passaram porém muitos meses, um ano, dois anos e nada acontecia. Depois de outro e mais uns meses, decidiram procurar um médico e iniciaram um longo e penoso processo no mundo da infertilidade. Foram exames e mais exames, análises atrás de análises, testes de tudo e mais alguma coisa, nada sendo descoberto que pudesse originar tal situação. Elisa não esmorecia, nada nem ninguém a fazia desviar do seu objetivo, estava cada vez mais focada e dedicada ao assunto. No entanto, cada período fértil perdido, cada mês que passava sem ter a tão esperada notícia, era mais uma facada, mais um murro no estômago. Sofria.... mais e mais a cada dia que passava. Ele também sofria, sempre calado no entanto, dizendo-lhe palavras de conforto e fazendo-lhe carinhos. O que mais lhe doía era a tristeza do seu amor e todos, mas todos os dias, chegava a casa com uma flor, fosse ela comprada ou surripiada de um qualquer jardim, sempre lhe trazia uma flor. Uma flor e um sorriso nos lábios.

Após 10 longos anos de muitos tratamentos hormonais, injeções e consultas, nada, era o que eles tinham conseguido. Aliás, Elisa conseguiu criar um casulo, bem fundo e escuro, onde se enfiava, escondendo-se  de si e dos outros. Escondia-se das perguntas cruéis, dos comentários e dos conselhos tão sábios que todos lhe queriam dar. E acima de tudo fugia de si, embrenhando-se na sua desilusão e tristeza.
Por essa altura foi encaminhada  para a fertilização in vitro e inseminação artificial e a sua esperança voltou, foi como se tivesse renascido. Desta vez não havia muita margem para erro, agora era uma questão de tempo, foi porém logo informada que era um processo muito moroso. Entre consultas, tratamentos, punções, fertilização e inseminação, podia demorar muitos meses, anos até, se quisesse, podia recorrer a uma clínica privada.

Elisa pegou nas suas economias e foi com o marido a uma clínica no Porto. Ia acontecer, tinha de acontecer.
A ovulação foi estimulada, retiraram os óvulos, o esperma dele, fizeram a fertilização e no dia da inseminação disseram-lhe "temos quatro óvulos fertilizados, quantos quer?" Os olhos de Elisa brilharam de alegria e por segundos viu a casa cheia de crianças. "Todos!" respondeu.
O que ela não esperava era que nenhum deles tivesse conseguido agarrar-se ao seu útero sedento de vida...
Elisa chorou durante dias, ficou devastada mais uma vez. Mas reergueu-se logo em seguida e resolveu tentar de novo, uma e outra vez. Sem sucesso...
E ao fim de quinze anos, já sem economias, nem opções, nem forças para mais nada, Elisa estava um farrapo, um vulto, uma sombra, tinha de desistir. Nunca iria ser mãe, nunca iria realizar o seu maior sonho...

Uns dias mais tarde o marido chegou a casa com uma proposta: "E se adotassemos uma criança?"
Ela demorou dias a digerir o assunto, a pensar, a avaliar. Seria mãe na mesma não seria? Mas.. e se??

Algumas semanas depois pediu para ele se juntar a ela na mesa da sala de jantar, iam preencher uns formulários. Sorriram um para o outro e os seus rostos voltaram a iluminar-se.

Um dia, como todos os dias em que chegava do trabalho, passou na caixa do correio e estava lá uma carta da Segurança Social, a sua candidatura para a adoção tinha sido aceite! Dançou, cantou, festejou. Foi o mais belo presente dos últimos tempos, tinha acabado de completar 38 anos. Que alegria, que felicidade, apenas manchada pelo pequeno pormenor de que não andava a sentir-se muito bem, algo de estranho se passava com ela.

Foi logo no dia seguinte, ao abrir a porta do escritório que o sangue lhe fugiu, a luz se apagou e de repente, tudo ficou escuro. Elisa desfaleceu ali mesmo, desmaiou, apagou. Veio o Inem e foi levada para o hospital.

Estava grávida. Grávida!!

Passados uns meses nasceu o Afonso e passado um ano e meio nasceu o Guilherme.

28 comentários:

  1. Já me fizeste emocionar logo de manhã... obrigada!

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  2. Que história maravilhosa, e tão emocionante!

    Beijinhos

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  3. Passar por tratamentos de fertilidade, nem sei a quem custa mais - se ao homem, se à mulher. A desilusão pode ser devastadora para ambos, e um homem que pode sentir-se Pai entre a fertilização e o resultado da gravidez, e poderá ter uma das maiores tristezas da sua vida.

    Ao contrário do que muita gente pensa, não se podem escolher quantos óvulos implantar. Há um máximo.E nem todos os óvulos que são recolhidos são viáveis para implantar no útero. Isto só para esclarecer que, por muito que as pessoas digam: "ter filhos é fácil, já há tratamentos". Pois há, mas até a cura de uma constipação pode ter efeitos paralelos, e isto não é só "chegar e virar" como muita gente pensa.

    Isto é um assunto tão lato. Mas fico contente que fales nele. Desde miúda sempre tive receio que um dia não pudesse ter filhos. E o receio acabou por se concretizar. A minha mãe, quando veio a menstruação pela primeira vez, disse que aí já estava apta a ter filhos. - acho que foi a única conversa intima que tive com ela. Estava tão enganada, ela.

    Infelizmente, na vida real, muitos dos casos de se pensar em adopção, culminam em gravidezes. Mas as pessoas gostam de pensar que sim.

    A vida não é muito negra, mas nem sempre é cor-de-rosa.

    beijinho


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    1. Corrijo: Infelizmente, na vida real, muitos dos casos de se pensar em adopção, não culminam em gravidezes. Mas as pessoas gostam de pensar que sim.

      Queria negar a frase e não foi o que fiz. Assim perdia-se a ideia do meu ponto de vista.

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    2. Eu entendi Alice :)
      Este é mesmo um mundo imenso e nem sempre fiz, até pelo contrário.
      Embora se baseie em alguns facto verídicos e numa dor que acompanhei durante algum tempo, isto é uma história à qual quis dar um final feliz.
      Um grande abraço para ti Alice e um sorriso, já que não posso fazer mais nada. :) beijinho

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    3. "Nem sempre feliz em vez de fiz" :)

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    4. Gaja Maria,

      Já fizeste aquilo que te foi possível: falar no assunto, fazer perceber que as pessoas - muitas delas não têm filhos não por egoísmo como outras pensam- mas porque a natureza não quer. Mas não devem explicações a ninguém - isto é um assunto que as pessoas que estão de fora têm dificuldade em entender.

      Gaja Maria, e o teu sorriso é sempre necessário para ajudar a carregar este peso da infertilidade. As pessoas que compreendem são bem-vindas na nossa vida.

      beijinho e bom dia

      (à vezes nas minhas viagens vejo um bolinhas como o que descreves que tens e dou comigo a pensar se serás tu. è sinal que há coisas que, de uma forma natural, transpiram para fora dos blogues; que as pessoas não nos são indiferentes)

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    5. Obrigada Alice :) Gosto de ti sabias?
      Quanto ao bolinhas é bem provável ser eu visto que não há muitos iguais por aqui :) beijinhos

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  4. Lindo e triste ao mesmo tempo. Muito bom!

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  5. Gajita, não se conta destas histórias a uma mulher, velha por sinal que é chorona que se emociona com tudo. Mundo Gajita linda história. E que me dizes de uma mulher com 35 anos casada mãe de três, produtiva, que é candidata à adopção?
    Vou ter mais um neto
    Kis :>}

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    1. Era lindo em vez de mundo, este dedo gordo por vezes salta das letras

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  6. Também tenho dedos desses :)))
    A sério que vais mais um neto? E é o filho nr. 4 de uma mãe de 3? Adotado ? Espectáculo! Mãe corajosa

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    1. Foi isso que lhe disse: corajosa.
      Mas sabes que leva em media quatro anos a adoptar, por isso está quase quase...
      Kis :>}

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  7. Estou cada vez mais rendida a estas pequenas (Grandes) histórias. Adoro! :)

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  8. O texto é comovente. Assim como os comentários. Mas a quantidade de "erratas" foi brutal ! Deve ter sido mesmo da comoção.
    Adorei. Também conheço alguns casos semelhantes ( uns tristes, outros com final feliz - adopção).
    Um beijo!

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    1. Era bom que todos tivessem finais felizes, infelizmente não é assim a realidade :)

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  9. Incrível e delicioso, a vida às vezes consegue ser mesmo muito surpreendente...

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    1. É mesmo. A vida traz muitas surpresas, umas boas, outras más :)

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  10. A "Elisa" merecia o final que deste ao conto/texto. Feliz!

    Fico à espera, venha o próximo - IV ;)

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    1. Nem todas as histórias têm finais felizes, mas esta tinha de ter :))

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  11. Boa tarde,
    Infelizmente nem sempre as histórias acabam tão bem.
    Durante anos fiz 1001 tratamentos e nada.... hoje tenho o Francisco o meu filho, mai lindo, que adotei faz hoje precisamente 13 anos. A minha historia acabou bem, ou melhor dizendo a minha (nossa) historia começou há 13 anos de imensa felicidade, com alguns (poucos) espinhos. O meu Francisco tem 16 anos é um adolescente como tantos outros, que sabe que não andou na barriga da mãe, mas sabe que é mmmmmmmmuuuuiiiittto amado. O meu processo de adoção não foi longo (agora penso assim) demorou 1 ano e meio, e logo no 2º dia de conhecer o meu Francisco, ficou em casa connosco e desde aí eu sou a mãe mais feliz do mundo.
    Se gostava de ter andado gravida? gostava
    Seria mais feliz? não sei
    Mas o Francisco não teria aprecido na m inha vida e por isso eu tenho a certeza que Deus me levou para este caminho para me provar que a felicidade está onde menos esperamos.
    Bjs

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    1. É verdade Dulce, por vezes há males que vêm por bem e no teu caso a felicidade acabou por bater-te à porta, veio de uma forma diferente é certo, mas isso não importa, o que importa é que realizas-te o sonho de ser mãe e és muito feliz. Beijinho

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