quarta-feira, 18 de março de 2015

Histórias IV - Ambição

O Jorge era de boas famílias, vestia-se bem, usava sempre o cabelo bem aparado e penteado e apesar de ser um "betinho" todos gostavam dele, era até bastante popular na escola. O Jorge era brincalhão e engraçado, não usava calão mas falava simples e sem presunção, alinhava em todas as brincadeiras e tinha um sorriso fácil e genuíno, além disso era um gentleman para as raparigas. Um verdadeiro "borracho" o Jorge. Era no entanto escusado apaixonarem-se por ele, já que só tinha olhos para  Carla, sua namorada desde sempre e com quem acabaria mais tarde por casar.

O Jorge era esperto e inteligente e seguiu os estudos na área da gestão de empresas com bastante sucesso e quando terminou, resolveu voltar para a sua pequena cidade onde, com o patrocínio dos pais, abriu um escritório que abrangia contabilidades, auditorias, gestão de patrimónios, técnicos de contas e por aí fora.

Entretanto o Jorge casou-se com a Carla, na altura já formada em economia e com um bom emprego. Construíram uma bonita e confortável vida em comum e tiveram duas filhas.
E o Jorge somava sucessos atrás de sucessos, o escritório ia de vento em popa com cada vez mais clientes, sempre em crescendo.
A ele sabia-lhe bem tudo aquilo, sentia-se poderoso, corria-lhe uma adrenalina inexplicável nas veias, sentia um frenesim a cada conquista, uma felicidade orgásmica a cada sucesso.
Adquiriu uma das maiores casas da sua pequena cidade, que reconstruiu e pintou de amarelo, a cor que poucos se atreviam a usar  na altura mas que logo se tornou moda. Dava nas vistas aquele casarão e todos sabiam que aquela casa era do Jorge, o filho  da D. Leonor. Comprou um carrão para ele, outro para Carla e as filhas passaram a frequentar o colégio inglês.

E como é da condição humana, o poder e o dinheiro aguçam a ambição e o Jorge não era diferente dos outros.
Num domingo à tarde, na esplanada com Carla, enquanto as miúdas brincavam por ali, anunciou-lhe assim, sem mais rodeios que estava na altura de estagnar ou avançar e ele tinha decidido avançar. Ia abrir um escritório na capital. Carla compreendeu a situação mas ficou triste e magoada pedindo-lhe que pensasse bem no assunto. Já tinha tão pouco tempo, iria andar constantemente em viagem para Lisboa e para a terra, perdia qualidade de vida, não tinha tempo para os amigos ou a família, para ir de férias ou de fim de semana, a sua relação iria perder com tudo aquilo e ela precisava de companhia e de apoio. E as filhas? Se já pouco as via, como seria daí para a frente? Não iria às festas de final de ano delas, nem de Natal, não participaria das suas actividades, não iria vê-las crescer na melhor fase da vida delas. Um estranho era no que ele se iria tornar. Era isso que ele queria?
Não era, mas ela já tinha imaginado o que era ter um escritório de sucesso em Lisboa, a capital? E nada o deteve, mais uma vez seguiu em frente.

Meses volvidos, Jorge dividia os seus dias e as suas noites entre o escritório da terra e o de Lisboa. Tanta coisa para fazer  e o tempo não esticava, passava a correr e Jorge corria com ele e contra ele.
Naquele dia a filha mais nova fazia dez anos e Carla fez-lhe um ultimato já muito aborrecida, ele tinha de estar presente no jantar de aniversário da filha com a família.

Jorge tinha reuniões em Lisboa nesse dia e saiu de casa ainda de madrugada para conseguir fazer tudo o que era necessário e estar em casa a horas, não queria mais uma zanga. Pelo caminho, ainda sem ninguém àquela hora, começou a rever a sua agenda mentalmente. Tinha tudo, documentos organizados em pastas, por prioridades e datas e uma folha com os tópicos a discutir para não haver perdas de tempo. Ui, tinha-se esquecido, quando fosse hora da abertura, tinha de ligar para o escritório, precisava de saber o câmbio do dia. Tão embrenhado ia nos seus pensamentos que nem reparou no camião que lentamente seguia na faixa da direita...

O embate foi de tal forma violento que o seu grande e supostamente seguro automóvel se enfiou totalmente por baixo do camião.
Jorge ficou entre a vida e a morte, em coma induzido, durante 4 longas semanas. Carla nunca saiu de perto dele, contava-lhe o que se passava lá fora, como estavam as filhas, que ligaram do escritório... Apesar de tudo, amava-o e ele não merecia tal destino, nem ele, nem elas. As suas vidas desfeitas por causa de uma ambição desmedida... E chorava com a mão dele entre as suas.

Entretanto Jorge começou a reagir, o pior já tinha passado, iria sobreviver.
Seguiram-se meses e meses de recuperação, tratamentos, fisioterapia. Nunca iria recuperar totalmente e as sequelas seriam bastantes, não mais teria condições para trabalhar. Talvez consegui-se alguma qualidade de vida, mas com bastantes limitações.

Os escritórios foram vendidos. Jorge dividia os seus dias entre a casa e as instituições médicas e Carla dividia-se em muitas para dar conta de tudo.
À medida que ele foi tomando consciência das suas limitações e do que era actualmente a sua vida, do que aconteceu e no que se tornara, foi deixando crescer uma grande revolta que não conseguia controlar. Tornou-se violento e maltratava a mulher, as filhas e todos quantos se aproximavam dele.
E Carla cansou-se, não por ela, que até compreendia, mas pelas filhas, não queria aquilo para elas.

A casa amarela foi vendida, Carla voltou ao trabalho, as filhas foram viver com ela para um pequeno mas acolhedor apartamento e Jorge ficou ao cuidado dos pais.

De vez em quando vê-se o Jorge a deambular pela cidade. Arrasta uma perna, não mexe um braço, lembra-se de algumas coisas e de algumas pessoas e fala sozinho pelas ruas, sozinho e com quem passa por ele, mas não se percebe o que ele diz...

12 comentários:

  1. pois, nem sei que dizer. É uma sorte, a vida.

    Bjos

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    1. é vivê-la o melhor possível com conta, peso e medida. Fatalidades acontecem.. :)

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  2. Não precisamos de subir tão alto nem ir tão longe para pensarmos quais são as prioridades da nossa vida. A história é triste mas faz pensar...

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    1. Mas há fatalidades que nem sempre têm a ver com as escolhas que fazemos. Há que viver o melhor que pudermos :)

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  3. Há um ditado que diz "quanto mais alto se sobe, maior é a queda" ou "quem tudo quer, tudo perde".
    A ambição desmedida, creio, nunca levou a um bom porto!

    A tua história dá para reflectir no que é de facto importante nesta vida!
    Beijinhos

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    1. A ambição também é importante nas nossas vidas. Com conta, peso e medida, claro e esperando que não aconteçam fatalidades pelo caminho :)

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  4. Quantas histórias (reais) conhecemos assim ... infelizmente a ambição cega e muitas vezes torna secundário, quem devia ter o papel principal.

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    1. Verdade Nina, embora um pouco de ambição não faça mal a ninguém, há que pesar as decisões e esperar que não aconteçam certos imprevistos :)

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  5. duro mas poderá ser a história de algumas pessoas de tão real. pode ser que sirva para outras tantas abrirem a pestana!
    eu gostei! boa!

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  6. O rapaz teve azar! Imagina que o Belmiro de Azevedo nunca tinha saído da terra? Ou o dono do 1° McDonalds? As coisas evoluem. Esta na massa do sangue querer sempre mais. Tenho pena dele e da família. Abraçinho.

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  7. Dá que pensar mas creio que também teve azar...
    Às vezes só pensamos no que é importante depois de o perdermos...
    :|
    Beijinhos.

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