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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Era uma vez uma lagartixa

Era uma lagartixa assim entre a cor da terra e o cinzento, às pintas, comprida, esguia e com uma cauda fininha e umas patas com cinco gadamunhos horripilantes. Muito feiosa mesmo. 
Achava-se no entanto muito esperta e passava a vida a esconder-se e esgueirar-se por entre folhagens, muros e tudo o que a pudesse salvar de gatos, cães e outros bichos predadores, inclusive humanos que a achavam um réptil feio e repugnante e tentavam constantemente caçá-la, esborrachá-la. Era uma vida difícil a dela, mas ela sabia que nunca haveriam de a caçar, ainda haviam de a ver um dia. 
O seu grande sonho era nem mais nem menos tornar-se um jacaré enorme e robusto que assusta-se tudo e todos e a fizesse uma poderosa vencedora. 
Sendo exímia corredora e possuidora de grande arte e engenho lá ia sobrevivendo, muitas vezes à custa da vida de outras lagartixas mais fracas do que ela. Nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, aliás, tinha mesmo a certeza que nada a podia deter. Seria um enorme jacaré no submundo das lagartixas. Então, comia todas as aranhas e insectos que conseguia apanhar, era vê-los de costas e pumba, lá marchavam mais uma bichezas. Cada vez mais matreira e refinada tentava a todo o custo subir na hierarquia das lagartixas. Por vezes via-se ao espelho e na loucura da ilusão conseguia até ver o seu corpo a tornar-se quase quase num enorme jacaré. Somava e seguia, confiante de que com o tempo atingiria o seu intento.
Cega naquela luta, esqueceu-se porém de que a sua cauda era enorme e esta ficou entalada e partiu-se. Distraída a olhar a cauda que apesar de partida ainda mexia pisaram-na, esborracharam-na, esfodaçaram-lhe aquelas patas pessonhentas. Não se finou, ficou no entanto moribunda o raio da bicha.
A ver se ela aprendeu que uma lagartixa nunca chega a jacaré.

A irmã da dita cuja lagartixa pessonhenta.
(retirei a imagem da net, não consegui fotografar a verdadeira)



quinta-feira, 9 de julho de 2015

Prenhe

Ela queixava-se  todos os seus dias que se sentia seca, vazia por dentro, oca. Mas jurava a pés juntos, jurava que um dia, amanhã talvez, haveria de voltar a sentir chegando uma falta de ar em forma de longos e profundos suspiros, uma dor aguda no peito, perfurando, cravando-se cada vez mais fundo, inundando de um sangue fervente todo o seu corpo, uma tremura nas mãos, uma faísca no olhar, uma chama encandescente no estômago. Haveria de voltar a sentir uma alegria imensa e ao mesmo tempo uma angústia tamanha. Haveriam  de haver momentos em que o seu olhar se perderia no horizonte adivinhando que o nevoeiro se dissiparia e viria o sol, brilhante, cravejado de diamantes que lhe adornariam os seus dias. E à noite viriam as estrelas que ela e ele perscrutariam, deitados na relva de mãos dadas e lhes incendiariam os beijos e lhes aqueceriam as mãos, sedentas de toques, movidas pelo desejo. E os seus corpos haveriam de se transformar num só, de se fundir, de estremecer em convulsões rítmicas e aceleradas. Haveriam de ficar lado a lado, horas sem fim, apenas a olharem-se ou abraçados...
Um dia haveria de sentir-se de novo assim, prenhe. Prenhe de amor e de paixão.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Puzzle

No fundo ela teria mesmo a necessidade de o menosprezar, minimizar, ignorar, fazer questão  de o reduzir à sua insignificância para que ele não pudesse nunca pensar que alguma vez teria importância ou valor. Denotava-se até um pouco de agressividade  no olhar e na voz. Ele sabia-o.
Estava bem assim pensava ela, há pessoas que trazem a verdade espelhada na cara e a sinceridade na língua. Essas, é importante fazê-las calar.
Haveria no entanto momentos e dias em que seria inevitavelmente necessário mudar de atitude. Alguma atenção, um pouco de doçura, talvez até alguma importância ou um pouco de valor teriam de ser demonstrados pois faltaria uma pequena peça para concluir o puzzle. Peça essa que poderia ajudar a concluir o puzzle do suposto poder, essa doce e maravilhosa sensação que tinha provado e já não vivia sem. Um gosto algumas vezes amargo é certo, mas um gosto que queria para sempre.
Uma vez concluído, tudo voltaria ao normal, até haver necessidade de concluir mais um.
Se ele estivesse para isso...

terça-feira, 16 de junho de 2015

Vergonha



Helena seguia no seu passo curto e apressado, não sabia muito bem para onde. Naquele dia, curiosamente e ao contrário de em todos os outros dias, não sabia onde se dirigir, absorta que estava em seus pensamentos. Seguia em frente, virava à direita, depois voltava para trás, virava à esquerda, a cabeça baixa e o semblante carregado. Parecia carregar o mundo às costas.
Conhecedora de que errar é inerente à condição humana, que errar faz crescer, aprender, discernir com exatidão o que de mais certo existia na vida, sabia porém, que esquecer seus próprios valores e deixar-se ir pelos valores de outros, errando deliberadamente, era tudo o que não queria para si. Vergonha era o que sentia... 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Era uma vez

Ele tocava guitarra e os resto do grupo acompanhava. Os seus dedos percorriam as cordas com uma destreza que fazia com que a guitarra parecesse mágica. Ela falava, chorava, gemia, saiam dali sons que faziam com que o público ficasse deleitado a ouvir e em absoluto silêncio num misto de sentimentos e emoções. Aquela guitarra falava, dizia a cada pessoa tudo o que de mais bonito podia haver, despertava sentimentos, emoções. Ele, de cabeça baixa e olhos cerrados estava no seu mundo, a sentir a música e a fazê-la passar dos seus dedos para a guitarra, a música era ele, a sua vida, o seu ser. 
Foi quando ela, com os seus longos cabelos encaracolados desgrenhados, simples na forma e no ser, que conhecia aquela música tão bem e lhe apeteceu cantá-la, ganhou coragem, subiu ao palco e pediu um microfone. O público ficou estupefacto, como é que ela se atrevia? 
Ela, decidida, pegou na canção e às primeiras palavras, ele, que nem se tinha apercebido do que acontecera, abriu os olhos. A voz era rouca, forte, cheia, cheia de tudo. Foi cantando com garra e determinação como se de uma artista se tratasse e a expressão era de puro prazer, de alegria, de sentimento à flor da pele. Ele estava já de olhos muito abertos, fitava-a espantado, ela olhou para ele e os seus olhares cruzaram-se, todos viram aquele fogo cruzado, a luz, a empatia entre eles. Ele já tocava para ela e ela cantava para ele, de costas para o público. O resto da banda foi parando de tocar e ali estavam eles dois, como se uma enorme bolha os envolvesse, como se estivessem sozinhos, como se mais nada existisse para além deles num enamoramento repentino mas intenso. 
O público nem respirava. 
A canção terminou por fim e ela pediu desculpa, agradeceu e saiu do palco. Ele correu atrás dela, pegou-lhe nas mãos, olhou-a nos olhos, pediu-lhe para ficar e ela aceitou. O resto da noite foi surreal, um momento único e inexplicável. Ninguém arredou pé até que o reportório chegasse ao fim, a ver e a ouvir aqueles dois que eram um só.
No fim, ela foi embora sem deixar contacto, ele ficou à porta a vê-la afastar-se...

domingo, 26 de abril de 2015

Afirmação?

Ela olhava-as extasiada num dos intervalos da manhã no pátio da escola, enquanto comia o pão com fiambre cuidadosamente embrulhado pela mãe. Chegavam cheias de si próprias, cheias de certezas, cheias de auto-confiança e atitude. Puxavam do maço tiravam um cigarro e passavam o isqueiro de mão em mão acendendo-os. De braço ao alto, cigarros em riste cheias de estilo, faziam bolas com o fumo e riam de tudo e de nada. Sem medos, sem culpas, como se o mundo fosse delas.
A ela tinham-lhe incutido que era errado, que era feio, prejudicial à saúde e que nunca deveria sequer passar-lhe pela cabeça experimentar tal coisa, pois tornar-se-ia um vicio que nunca mais conseguiria largar. Ganhou medo. Tinha sempre medo. Tinha um intimo rebelde, mas tinha sempre medo...
Não gostaria nunca de desiludir quem lhe incutira tais princípios, no entanto, a cada dia que passava, elas não lhe saiam da cabeça. Gostava de ser assim, de ter atitude, confiança, de não ter medo....

quarta-feira, 18 de março de 2015

Histórias IV - Ambição

O Jorge era de boas famílias, vestia-se bem, usava sempre o cabelo bem aparado e penteado e apesar de ser um "betinho" todos gostavam dele, era até bastante popular na escola. O Jorge era brincalhão e engraçado, não usava calão mas falava simples e sem presunção, alinhava em todas as brincadeiras e tinha um sorriso fácil e genuíno, além disso era um gentleman para as raparigas. Um verdadeiro "borracho" o Jorge. Era no entanto escusado apaixonarem-se por ele, já que só tinha olhos para  Carla, sua namorada desde sempre e com quem acabaria mais tarde por casar.

O Jorge era esperto e inteligente e seguiu os estudos na área da gestão de empresas com bastante sucesso e quando terminou, resolveu voltar para a sua pequena cidade onde, com o patrocínio dos pais, abriu um escritório que abrangia contabilidades, auditorias, gestão de patrimónios, técnicos de contas e por aí fora.

Entretanto o Jorge casou-se com a Carla, na altura já formada em economia e com um bom emprego. Construíram uma bonita e confortável vida em comum e tiveram duas filhas.
E o Jorge somava sucessos atrás de sucessos, o escritório ia de vento em popa com cada vez mais clientes, sempre em crescendo.
A ele sabia-lhe bem tudo aquilo, sentia-se poderoso, corria-lhe uma adrenalina inexplicável nas veias, sentia um frenesim a cada conquista, uma felicidade orgásmica a cada sucesso.
Adquiriu uma das maiores casas da sua pequena cidade, que reconstruiu e pintou de amarelo, a cor que poucos se atreviam a usar  na altura mas que logo se tornou moda. Dava nas vistas aquele casarão e todos sabiam que aquela casa era do Jorge, o filho  da D. Leonor. Comprou um carrão para ele, outro para Carla e as filhas passaram a frequentar o colégio inglês.

E como é da condição humana, o poder e o dinheiro aguçam a ambição e o Jorge não era diferente dos outros.
Num domingo à tarde, na esplanada com Carla, enquanto as miúdas brincavam por ali, anunciou-lhe assim, sem mais rodeios que estava na altura de estagnar ou avançar e ele tinha decidido avançar. Ia abrir um escritório na capital. Carla compreendeu a situação mas ficou triste e magoada pedindo-lhe que pensasse bem no assunto. Já tinha tão pouco tempo, iria andar constantemente em viagem para Lisboa e para a terra, perdia qualidade de vida, não tinha tempo para os amigos ou a família, para ir de férias ou de fim de semana, a sua relação iria perder com tudo aquilo e ela precisava de companhia e de apoio. E as filhas? Se já pouco as via, como seria daí para a frente? Não iria às festas de final de ano delas, nem de Natal, não participaria das suas actividades, não iria vê-las crescer na melhor fase da vida delas. Um estranho era no que ele se iria tornar. Era isso que ele queria?
Não era, mas ela já tinha imaginado o que era ter um escritório de sucesso em Lisboa, a capital? E nada o deteve, mais uma vez seguiu em frente.

Meses volvidos, Jorge dividia os seus dias e as suas noites entre o escritório da terra e o de Lisboa. Tanta coisa para fazer  e o tempo não esticava, passava a correr e Jorge corria com ele e contra ele.
Naquele dia a filha mais nova fazia dez anos e Carla fez-lhe um ultimato já muito aborrecida, ele tinha de estar presente no jantar de aniversário da filha com a família.

Jorge tinha reuniões em Lisboa nesse dia e saiu de casa ainda de madrugada para conseguir fazer tudo o que era necessário e estar em casa a horas, não queria mais uma zanga. Pelo caminho, ainda sem ninguém àquela hora, começou a rever a sua agenda mentalmente. Tinha tudo, documentos organizados em pastas, por prioridades e datas e uma folha com os tópicos a discutir para não haver perdas de tempo. Ui, tinha-se esquecido, quando fosse hora da abertura, tinha de ligar para o escritório, precisava de saber o câmbio do dia. Tão embrenhado ia nos seus pensamentos que nem reparou no camião que lentamente seguia na faixa da direita...

O embate foi de tal forma violento que o seu grande e supostamente seguro automóvel se enfiou totalmente por baixo do camião.
Jorge ficou entre a vida e a morte, em coma induzido, durante 4 longas semanas. Carla nunca saiu de perto dele, contava-lhe o que se passava lá fora, como estavam as filhas, que ligaram do escritório... Apesar de tudo, amava-o e ele não merecia tal destino, nem ele, nem elas. As suas vidas desfeitas por causa de uma ambição desmedida... E chorava com a mão dele entre as suas.

Entretanto Jorge começou a reagir, o pior já tinha passado, iria sobreviver.
Seguiram-se meses e meses de recuperação, tratamentos, fisioterapia. Nunca iria recuperar totalmente e as sequelas seriam bastantes, não mais teria condições para trabalhar. Talvez consegui-se alguma qualidade de vida, mas com bastantes limitações.

Os escritórios foram vendidos. Jorge dividia os seus dias entre a casa e as instituições médicas e Carla dividia-se em muitas para dar conta de tudo.
À medida que ele foi tomando consciência das suas limitações e do que era actualmente a sua vida, do que aconteceu e no que se tornara, foi deixando crescer uma grande revolta que não conseguia controlar. Tornou-se violento e maltratava a mulher, as filhas e todos quantos se aproximavam dele.
E Carla cansou-se, não por ela, que até compreendia, mas pelas filhas, não queria aquilo para elas.

A casa amarela foi vendida, Carla voltou ao trabalho, as filhas foram viver com ela para um pequeno mas acolhedor apartamento e Jorge ficou ao cuidado dos pais.

De vez em quando vê-se o Jorge a deambular pela cidade. Arrasta uma perna, não mexe um braço, lembra-se de algumas coisas e de algumas pessoas e fala sozinho pelas ruas, sozinho e com quem passa por ele, mas não se percebe o que ele diz...

quarta-feira, 11 de março de 2015

Histórias III - Elisa

Ela própria uma boneca, de grandes e vivaços olhos escuros e umas bonitas tranças que a mãe lhe fazia escrupulosamente todas as manhãs, enfeitando-as com laços cor de rosa enquanto lhe ia dizendo que um dia, também ela, iria ser mãe e tinha de ter muito brio com a educação de seus filhos. "É tão linda a minha menina" dizia a mãe a toda a gente que se metia com ela quando a levava pela mão, com a sua boneca ao colo.
Elisa adorava bonecas e tal como via a mãe fazer ao irmão, despia, vestia e com todo o carinho deitava, levantava, dava papa e colo... Ela sempre brincava com as suas bonecas e se fingia de mãe, quando fosse grande, queria ser mãe.

Um dia já quase adulta, em que se divertia com as amigas enquanto faltavam a uma aula, conheceu um rapaz por quem se apaixonou perdidamente. Namoraram alguns meses, o tempo suficiente para acabarem a escola, arranjarem um emprego e logo casaram que até parecia que tinham pressa. E tinha. Elisa tinha pressa de realizar o seu maior sonho, o de ser mãe.

Passaram porém muitos meses, um ano, dois anos e nada acontecia. Depois de outro e mais uns meses, decidiram procurar um médico e iniciaram um longo e penoso processo no mundo da infertilidade. Foram exames e mais exames, análises atrás de análises, testes de tudo e mais alguma coisa, nada sendo descoberto que pudesse originar tal situação. Elisa não esmorecia, nada nem ninguém a fazia desviar do seu objetivo, estava cada vez mais focada e dedicada ao assunto. No entanto, cada período fértil perdido, cada mês que passava sem ter a tão esperada notícia, era mais uma facada, mais um murro no estômago. Sofria.... mais e mais a cada dia que passava. Ele também sofria, sempre calado no entanto, dizendo-lhe palavras de conforto e fazendo-lhe carinhos. O que mais lhe doía era a tristeza do seu amor e todos, mas todos os dias, chegava a casa com uma flor, fosse ela comprada ou surripiada de um qualquer jardim, sempre lhe trazia uma flor. Uma flor e um sorriso nos lábios.

Após 10 longos anos de muitos tratamentos hormonais, injeções e consultas, nada, era o que eles tinham conseguido. Aliás, Elisa conseguiu criar um casulo, bem fundo e escuro, onde se enfiava, escondendo-se  de si e dos outros. Escondia-se das perguntas cruéis, dos comentários e dos conselhos tão sábios que todos lhe queriam dar. E acima de tudo fugia de si, embrenhando-se na sua desilusão e tristeza.
Por essa altura foi encaminhada  para a fertilização in vitro e inseminação artificial e a sua esperança voltou, foi como se tivesse renascido. Desta vez não havia muita margem para erro, agora era uma questão de tempo, foi porém logo informada que era um processo muito moroso. Entre consultas, tratamentos, punções, fertilização e inseminação, podia demorar muitos meses, anos até, se quisesse, podia recorrer a uma clínica privada.

Elisa pegou nas suas economias e foi com o marido a uma clínica no Porto. Ia acontecer, tinha de acontecer.
A ovulação foi estimulada, retiraram os óvulos, o esperma dele, fizeram a fertilização e no dia da inseminação disseram-lhe "temos quatro óvulos fertilizados, quantos quer?" Os olhos de Elisa brilharam de alegria e por segundos viu a casa cheia de crianças. "Todos!" respondeu.
O que ela não esperava era que nenhum deles tivesse conseguido agarrar-se ao seu útero sedento de vida...
Elisa chorou durante dias, ficou devastada mais uma vez. Mas reergueu-se logo em seguida e resolveu tentar de novo, uma e outra vez. Sem sucesso...
E ao fim de quinze anos, já sem economias, nem opções, nem forças para mais nada, Elisa estava um farrapo, um vulto, uma sombra, tinha de desistir. Nunca iria ser mãe, nunca iria realizar o seu maior sonho...

Uns dias mais tarde o marido chegou a casa com uma proposta: "E se adotassemos uma criança?"
Ela demorou dias a digerir o assunto, a pensar, a avaliar. Seria mãe na mesma não seria? Mas.. e se??

Algumas semanas depois pediu para ele se juntar a ela na mesa da sala de jantar, iam preencher uns formulários. Sorriram um para o outro e os seus rostos voltaram a iluminar-se.

Um dia, como todos os dias em que chegava do trabalho, passou na caixa do correio e estava lá uma carta da Segurança Social, a sua candidatura para a adoção tinha sido aceite! Dançou, cantou, festejou. Foi o mais belo presente dos últimos tempos, tinha acabado de completar 38 anos. Que alegria, que felicidade, apenas manchada pelo pequeno pormenor de que não andava a sentir-se muito bem, algo de estranho se passava com ela.

Foi logo no dia seguinte, ao abrir a porta do escritório que o sangue lhe fugiu, a luz se apagou e de repente, tudo ficou escuro. Elisa desfaleceu ali mesmo, desmaiou, apagou. Veio o Inem e foi levada para o hospital.

Estava grávida. Grávida!!

Passados uns meses nasceu o Afonso e passado um ano e meio nasceu o Guilherme.

terça-feira, 3 de março de 2015

Histórias II - Acompanhante

Dirigiu-se ao cacifo apressada, tirou a bata, descalçou as botas de biqueira de aço, enfiou tudo lá dentro, pegou no casaco e na mala, despediu~se das colegas e saiu a correr. Estava ansiosa por chegar a casa, tomar o seu duche relaxante, despir-se daquele cheiro, daquela personagem e pôr o seu perfume. Assim que chegou ao carro, olhou o nome na agenda e esboçou um sorriso.
No caminho para casa foi pensando em como tinha tanta sorte em ter conseguido aquele turno, assim podia dormir de manhã antes de voltar ao trabalho que a noite ia ser longa.

Já em casa e enquanto mordiscava uma maçã abriu o roupeiro. A sua melhor lingerie, preta, como ele gostava, o vestido cor de beringela, aquele que melhor lhe acentava, o decote evidenciava-lhe o peito firme e a cor fazia sobressair os seus olhos cor de avelã e a sua pele cor de pêssego. Afinal era o seu melhor e mais assíduo cliente, aquele, o único que lhe retribuía o prazer que ela lhe dava. Sentia até uma certa afeição, um gostar tremelicante, uma fraqueza nas pernas quando ia ter com ele, mas sabia, ela sabia que não podia ir além disso. Se ultrapassasse aquela ténue linha, aquele muro invisível, aquela ponte sem retorno, perder-se-ia para sempre, não haveria volta...

Tomou o seu banho, calmamente, deixando correr a água pelo corpo revigorando-o e passou o creme hidratante. A depilação estava impecável, as unhas também, as sobrancelhas no seu melhor que ainda ontem cuidara delas. Maquilhou-se e penteou-se como se de uma profissional se tratasse, aliás, ela já tinha sido profissional nessa área, mas trabalhava demasiadas horas, não dava para conciliar e ela queria dinheiro, esse vil metal que lhe permitia obter certas mordomias. A lingerie, as meias de seda, o vestido, os sapatos de marca e a mala igual. O casaco, faltava o casaco, de fina fazenda de um costureiro nacional conhecido. Olhou-se no espelho, deu uma volta. "Perfeito"!
Ela sabia que era a melhor, a mais bonita, a mais elegante, a mais meiga, aquela que todos queriam.

Dirigiu-se então ao restaurante combinado onde ele a esperava para jantar e começou o ritual, o jogo que gostava de jogar, o da sedução. Depois seguiram para o hotel, descalçaram-se e esticaram-se na cama, ele hoje queria conversar. E durante duas horas ele falou, falou e ela afagava-lhe o cabelo, dava-lhe a mão e ouvia...
Entretanto ele calou-se, olhou-a nos olhos e começou a desapertar-lhe o vestido, chegou a hora de ela lhe dar prazer.

Ao chegar a casa, pôs a mão na mala para procurar a chave e tocou no envelope. Aquela noite rendera-lhe 200 Euros. 200 Euros!! O carro já estava pago, a casa comprada, mobilada e a ser paga, tinha jóias verdadeiras, um telemóvel topo de gama. Tinha roupas e sapatos de marca,  frequentava os melhores restaurantes e hotéis, andava nos melhores carros, mas tudo isto só podia usar à noite claro, quem iria compreender aquelas coisas com um salário de operária. 

Enfiou a chave na porta de casa e abriu-a, uma casa linda porém escura, fria, sozinha, desprovida de calor humano. Não tinha amigos, quase não tinha ninguém, nem sequer um gato no sofá à sua espera. Tinha tudo, mas não tinha nada, valeria tudo aquilo a pena? Ela não passava no final de contas de uma prostituta de luxo...

Ah! Tinha algo, tinha uma bata e umas botas de biqueira de aço dentro de um cacifo à sua espera amanhã.
Deitou-se exausta e dormiu.