Demência
Chegava sempre antes da hora marcada.
Gostava que ainda fosse dia para perscrutar o horizonte e tentar
encontrar os contornos de um barco à vela, sinal de que havia solitários como
ele no mar, à mercê das ondas e do sol e do frio da noite. Imaginava-se um dia
num barco daqueles, com ela. Apenas os dois, um para o outro, um do outro, sem
pressas, sem horas, sem medos. Eles, o céu e o mar…
Raramente havia barcos à vela, uma ou outra vez ainda viu um
barco carregado de contentores e um barco de pesca, parecia-lhe a ele, lá ao
longe. De resto, o mar era aquela imensidão de água em tons de azul que
ondulava num vai e vem eterno e constante que o fascinava.
Mas entretanto o sol começava a beijar o mar, tingindo-o de um
laranja incandescente que parecia incendiar aquelas águas frias e profundas,
como se isso fosse possível e ele logo se esquecia dos barcos para observar
aquela imagem tão maravilhosa. Sabia dos milhares de letras escritas, em forma
de poema, carta ou livro e das imensas pinturas sobre o pôr-do-sol que o
tornaram tão vulgar, mas ele continuaria sempre a apreciar a enorme beleza de
tão sublime momento.
Sentia-se porém inquieto e ansioso naquele dia, ao contrário das
outras vezes em que a paz tomava conta de si e só se desvanecia com o aproximar
da hora do encontro em que uma enorme excitação tomava conta de si ao pensar
nela. Na sua imaginação conseguia vê-la a sair do carro, talvez de saia,
repleta de vincos por ter sido puxada para lhe deixar as pernas livres para
conduzir, as pernas altas e esguias das quais que ele conhecia cada centímetro,
a camisa desalinhada, justa no seu peito farto que estava louco para tocar, as
faces ruborizadas do calor, que lhe faziam sobressair os olhos expressivos, os
lábios carnudos que beijaria apaixonadamente, desesperadamente e o cabelo
desgrenhado por causa do vidro aberto do carro, que afagaria agressivamente de
desejo no início e mais lentamente quando ficavam os dois deitados,
entrelaçados e já saciados.
Imaginava a alegria no rosto dela, quando o visse, o abraço
entusiasmado, o beijo excitado que logo o transportava para outra dimensão.
Seguiriam juntos então, no carro dele para o quarto onde iriam amar-se, loucos
de paixão, tontos de desejo, inebriados pelo sentimento do perigo de serem
descobertos. Quase conseguia sentir-lhe o cheiro, o andar desajeitado e nu à
sua frente, a tatuagem na omoplata, o sinal no ventre que ela dizia ser grande
e flácido, mas que a ele se lhe apresentava liso e musculado. Quase morria de
desejo. Naquele dia iria amá-la como nunca!
Cada vez mais ansioso, já começava a sentir o frenesim da
chegada da hora e mal podia esperar. Senti-la nos braços, abraçá-la, beijá-la,
sorver cada momento sofregamente, sentir-se dentro dela e perder-se por entre
os seus cabelos, os seios, as pernas… Que loucura era a dele, que nem o deixava
raciocinar. Tinha tantas saudades que era capaz de largar tudo, ir com ela para
longe de tudo e de todos, como se de dois adolescentes imberbes e loucos se
tratassem. Sim, talvez num barco à vela, aí uns 3 meses, depois logo se veria.
Olhou o relógio e já estava na hora. “Estou insano”, pensou,
aquela mulher punha-o louco, demente, irracional. Não importava, assim seria.
Iria hoje propor-lhe ficarem juntos.
Reparando que estava já bastante atrasada, começou então a
contar as canas dos pescadores solitários espetadas na areia, àquela hora
presenças únicas na praia. Que estariam a pensar durante todas aquelas horas em
que estavam ali à espera que os peixes mordessem a sua isca? Porque estariam
ali? Conheceriam eles mulheres como aquela?
Cada vez mais atrasada, uma hora, duas horas quiçá… nem um
telefonema, nem uma mensagem, logo hoje que estava tão sedento, tão ansioso,
tão decidido. Ansioso… sabia agora porquê. Ele sabia, ele pressentira aquela
ausência. Ela não viria… nunca mais.
Mas porque viria ela, pensou, se até àquele dia nunca tinha
vindo?
Bonito...
ResponderEliminar:)
EliminarBrilhante. Isto deixa-me a pensar quanto talento está por aí desperdiçado e que não tem o devido reconhecimento? Parabéns. Sou fã!
ResponderEliminarObrigada lápis roído :) Há momentos assim, salta-nos a veia da escrita :))
EliminarImpressionante o teu post...Amei!
ResponderEliminarObrigada Jorge :)
EliminarQuando a Gaja quer, a Gaja faz.
ResponderEliminarUma gaja que é gaja é assim, e mainada!
Boa noite GM, a esta hora já terás embarcado com o teu demente eheheheh
Non, as noites de insónia dão-me para isto por vezes. Quando não é para a parvoeira :))
EliminarDepois do sonho que tive esta noite ( eu acordo cedinho e ainda tenho tempo para vir à blogosfera ) e ler este teu post, é uma lufada de ar fresco. Um dia "encomendo-te" um post destes lá para o meu jardim ;) Beijinho. Adorei.
ResponderEliminarBela imagem. Também "quero um post destes para o meu jardim"...
EliminarPrateada e Carlos, obrigada, tenho mil histórias na cabeça, mas a falta de tempo e disposição nem sempre são amigas, para não falar que nem sempre esta veia da escrita me ataca forte :))
EliminarGostei tanto deste registo! Queremos mais :)
ResponderEliminarUm beijinho, GM
Obrigada Miss Smile, vindo de ti que és uma maravilhosa escritora é um enorme elogio. Beijinho :)
EliminarLindo de ler - grato pela partilha das palavras.
ResponderEliminarUm abraço Carlos :) Obrigada
EliminarTens de escrever mais assim.
ResponderEliminarA ver se a minha veia da escrita volta :))
EliminarUma óptima investida pela ficção, sem dúvida. Parabéns!
ResponderEliminarEspero que não fiques por aqui, Gaja. :)
Um beijinho :)
Obrigada AC. Beijinho :)
EliminarGM, isso faz-se? Um desfecho destes assim?!? E aqui a JE já imaginando algo mais melo-dramático e sai-me um louco? Olha, sabes uma coisa? ADOREI. :))
ResponderEliminarehehe tenho de escrever um novo episódio, com final feliz :))
EliminarGostei =)
ResponderEliminar