terça-feira, 12 de maio de 2020

Dia 117 - Cá dentro


E cá estou eu, mais uma vez, presa a uma cadeira, em frente a uma mesa de trabalho. Zé gato dorme enroscado entre o teclado e o écran, aos poucos vai-se apoderando do meu espaço. Por entre as cortinas vejo que está sol e oiço o trânsito lá fora. À exceção da música de fundo que sai do meu computador, um pouco para que não me sinta tão sozinha, a casa está silenciosa, mas o mundo já mexe. As pernas entorpecidas, o corpo em ânsias de liberdade e movimento e os dedos deslizando sobre as teclas, cá vou debitando trabalho ao longo de mais um dia. Gosto do meu trabalho atual, mais parado, mais administrativo do que nunca, e longe daquilo que já fiz e que sempre quis para mim, mas já não sinto a paixão e a energia de outrora e isso atordoa-me. Várias escolhas ao longo da minha vida, várias mudanças de direção foram levando-me neste sentido e durante os últimos anos fui até apreciando esta situação. Fui deixando de querer mudar o mundo, fui deixando de querer ser e fazer diferente, fui-me acomodando. Em alguns dias levanto-me disposta a mudar tudo, mas depois, ao longo do dia, vou deparando-me com uma engrenagem já montada e a funcionar e perco a vontade de ser a pedra que a faz parar e ou mudar de direção. Além disso, praticamente não sou nada nem ninguém, não tenho esse poder e só vou criar entropia. Para mim e para outros. No fundo, faço parte de um rebanho e embora por vezes contrariada e com a alma em convulsões, lá vou indo para onde o pastor manda. Docilmente. E a vida é assim, temos por vezes de adormecer a nossa essência, rebelde e atormentada, nómada e sem parança para vivermos bem com nós próprios e com os outros. A guerrilha também cansa.

14 comentários:

  1. Até me arrepiei... Não faças isso. Ando eu tantas vidas para ser eu, para resgatar a minha essência. Não abras mão, Maria.

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    1. Eu sei Ana, mas o meu eu é tão rebelde, tão inconstante, tão reaccionário que até me assusta e só me dá chatices....

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  2. A guerrilha cansa. a inércia também. devíamos ter o meio termo, assim não abdicaríamos de tudo em que somos e em que acreditamos, para que o todo saia a ganhar.

    Às vezes, apetece mandar tudo para as urtigas, mudar de identidade e misturar-nos entre os demais e correr atrás da felicidade. Só que isto não é assim tão simples...infelizmente

    Anima-te. Puxa a comissura dos lábios para cima, toca a sorrir. Não podes deixar-te abater. Tens tanta coisa que te dá prazer fazer, é só um adiamento, mas depois desfrutarás por todas as vezes que não o pudeste fazer. tenta não perder tempo com as tristezas e faz planos para as alegrias que contas ter.

    Por favor, não estejas triste...

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    1. ALice, ´no meio termo, no equilíbrio que está a virtude e é isso que procuramos todos os dias. Insiste-se aqui, cede-se ali, medem-se consequências, tomam-se atitudes com o coração ou com a razão ou por medo ou cobardia ou cheias de coragem e determinação e a coisa lá vai andando. Não sei bem se é tristeza, é introspeção. Um pouco de negativismo à mistura também, mas está tudo bem.
      Um beijinho Alice

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  3. Uma das coisas mais difíceis que encontrei na vida, foi o de remar contra a maré, contra o acomodado, contra o instalado mas, tal como tu, um dia entreguei os pontos, só me cansava, só me entristecia, só conseguia chatices, a maioria achava que estava bem assim e... e fui adormecendo ao som da engrenagem, ainda que por dentro toda eu era rebeldia, necessidade de mudança, de passos em frente mas... quem manda pode, obedece quem vive de salário.

    Beijocas, leva com a calma possível e pedala até que as pernas te doam.

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    1. Non, é isso mesmo. Eu sei que me compreendes. Não é necessariamente mau, há pessoas que vivem assim uma vida inteira e safam-se bem, a nossa rebeldia é que teima em manifestar-se de vez em quando :)
      Fui pedalar, andei por lá duas horas ao fim do dia. Aí sim, estou bem viva e sou completamente livre :)
      Beijinho

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  4. Boa tarde:- também faço parte desse rebanho. Mas acredito que o Pastor nos vai levar a bom porto ( não ao clube, lol)
    Tudo, ainda que lentamente, irá voltar a ser igual a que era antes de aparecer a Pandemia. Nada vai mudar.
    .
    Tenha uma terça-feira feliz
    Cuide-se

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    1. Rykardo, os clubes agora estão em maus lençóis :)
      Há quem viva em rebanho e seja muito feliz, temos de fazer por isso e querer com muita força.
      Até amanhã

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  5. As peças da engrenagem são tão importantes como as pedras que mudam as coisas. È preciso alguém que mantenha a ordem e a "aparente" normalidade das coisas que funcionam. Como nas equipas de futebol, tão importante é o maestro como o que carrega a equipa às costas, a arte e o músculo.

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    1. Concordo Miguel, todas as peças são importantes, até as pedras que por vezes fazem pensar e travar alguns. Quanto mais não seja, que sirvam de chamada de atenção :)

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  6. Ovelha número 2, apresenta-se.
    A essência permanece e o facto é que com pessoas como tu, o mundo é um lugar melhor.
    Beijinho

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    1. Oh Magui, obrigada. Acredita que o facto de saber que há mais pessoas como eu é um alento.
      Beijinho

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  7. Grande texto, que diz tanto! Ando cansada de não haver escola. De não haver creche. De não haver a unidade aberta para crianças especiais. Ando cansada. Temos de nos mentalizar-mos porque a realidade pode ser sempre esta! :(
    -
    Sou como um rio, tão cheia de nada

    Beijo e um excelente dia...

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    1. Cidália, por mais que queiramos, isto tudo vai demorar a voltar ao normal.
      Beijinho

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